Ter filhos é algo que acontece naturalmente na vida da maioria das pessoas. No entanto,
muitos casais podem enfrentar dificuldade para concretizar seus planos de gravidez. A
infertilidade conjugal pode decorrer de problemas femininos ou masculinos e a investigação
das causas é fundamental para determinar um tratamento efetivo.
Por vezes, o casal chega a confirmar a gestação, mas, pouco tempo depois, lida com outra
situação difícil: o aborto. Quando a gravidez é interrompida por duas ou mais vezes, temos um quadro de abortamento de repetição.
O aborto é classificado como precoce quando acontece antes das 12 semanas de gestação.
Entre 12 e 22 semanas, é considerado tardio. Após a 22ª semana gestacional, já se enquadra
como óbito fetal. O abortamento de repetição recebe ainda a classificação de primário, se a
paciente não teve parto anterior, ou secundário, se houve pelo menos um parto prévio.
O que pode causar o abortamento de repetição?
O abortamento de repetição ocorre por diversas causas — insuficiência hormonal,
anormalidades cromossômicas, alterações na anatomia do útero, problemas hematológicos e
imunológicos, entre outras. Conheça os principais fatores associados!
Fatores endócrinos
Tanto a fertilidade quanto a evolução da gravidez dependem da ação correta de vários
hormônios. Sendo assim, alterações hormonais como a insuficiência do corpo lúteo —
produção reduzida de progesterona — dificultam a manutenção da gestação levando ao
abortamento precoce. Problemas endócrinos como diabetes descontrolada, doenças da
tireoide, obesidade e magreza extrema também são quadros que merecem atenção.
Distorções anatômicas uterinas
O abortamento de repetição, principalmente tardio, pode ter causas anatômicas, incluindo
doenças adquiridas como miomas, pólipos e sinequias, e malformações congênitas como útero septado. A incompetência istmocervical — incapacidade do colo do útero de segurar a gestação — é outro problema a ser investigado.
Causas genéticas
As alterações genéticas estão entre as causas do abortamento de repetição. As mais
frequentes são as anormalidades cromossômicas, sejam numéricas (aneuploidias) ou
estruturais, como inversões e translocações. Esse tipo de anomalia no embrião pode decorrer
de baixa qualidade dos óvulos ou espermatozoides, bem como de alteração no cariótipo dos
pais.
Infecções
Processos infecciosos como sífilis, rubéola, toxoplasmose e muitos outros estão associados a
casos de abortamento de repetição. Isso ocorre porque as células NK (natural killer) são
ativadas para destruir as células infectadas, mas se houver algum desequilíbrio, elas também
podem rejeitar o embrião.
Trombofilias
As trombofilias referem-se a uma predisposição aumentada para a formação de coágulos
sanguíneos (trombos). Essa é uma condição de risco para a gestante, tendo em vista que a
fisiologia da gravidez já está associada a um estado de hipercoagulabilidade para evitar
hemorragias. Nesses casos, pequenos trombos podem se formar nos vasos placentários e
obstruir o transporte de sangue oxigenado para o feto, levando ao aborto.
Causas imunológicas
Os fatores imunológicos estão presentes em alguns casos de abortamento de repetição e são classificados como aloimunes e autoimunes. O fator aloimune envolve uma dificuldade de interação entre o organismo materno e o feto, de forma que o sistema imunológico da
gestante percebe o embrião como um intruso e produz uma resposta de agressão em vez de
proteção.
Os fatores autoimunes consistem na autoagressão imunológica, isto é, o organismo ataca suas próprias células. Um exemplo disso é a síndrome de anticorpos antifosfolípides (SAF) que afeta o sistema hemostático, sendo considerada uma das principais causas de trombofilia.
Fatores exógenos
Condições ambientais podem não ser causas isoladas do abortamento habitual, mas
representam fatores de risco. Exemplos são: consumo elevado de álcool, tabagismo e uso de
drogas, inclusive alguns tipos de medicamentos. A exposição à radiação também é arriscada.
Abortamento idiopático
Apesar das diversas causas elencadas, o abortamento de repetição é idiopático em cerca de
metade dos casos, ou seja, nenhum fator é identificado. Isso representa um desafio clínico,
visto que não é possível propor tratamentos pontuais. No entanto, as técnicas da reprodução
assistida ampliam as possibilidades para o casal que deseja engravidar.
Quais exames identificam as causas do abortamento de
repetição?
Como se trata de uma condição multifatorial, o roteiro diagnóstico do abortamento de
repetição começa com anamnese aprofundada para levantar o histórico da paciente. Com base nos fatores previamente identificados e no exame físico detalhado, os exames complementares são solicitados para elucidar as suspeitas diagnósticas, incluindo:
- análises laboratoriais — dosagem hormonal, rastreio de infecções etc.
- pesquisa de trombofilia por meio da avaliação dos anticoagulantes;
- ultrassonografia transvaginal, que pode identificar várias anormalidades, a exemplo da
incompetência istmocervical;
- histeroscopia — técnica para visualizar o interior do útero para investigar
anormalidades como septo uterino, pólipos, miomas e outras;
- biópsia endometrial;
- análise imuno-histoquímica, que faz o estudo de alterações neoplásicas, tumores
- indiferenciados, doenças infecciosas e outras condições;
- pesquisa de células NK, que, em grande número, podem expulsar o embrião;
- avaliação da microbiota vaginal, uma vez que o desequilíbrio da flora bacteriana
(disbiose) também pode estar relacionado ao abortamento de repetição;
- exame do cariótipo do casal, para rastrear alterações cromossômicas.
Importante também acompanhar os níveis de beta hCG, pois podemos estar diante de
gestações molares, condição também chamada de mola hidatiforme. Trata-se de uma
complicação rara com risco de alterações celulares malignas e evolução para doença
trofoblástica gestacional — tumor que se origina do trofoblasto, uma camada de células que
circunda o embrião.
Como os casos de abortamento de repetição são conduzidos?
As condutas frente aos casos de abortamento recorrente variam de acordo com as causas
identificadas. Por exemplo:
insuficiência do corpo-lúteo requer suporte hormonal com progestagênios;
trombofilias necessitam de tratamento com enoxaparina;
número elevado de células NK é controlado com a administração de imunoglobinas
com ação reguladora;
incompetência istmocervical é corrigida com cerclagem, técnica cirúrgica para
fortalecimento do colo uterino;
problemas anatômicos em geral, como miomas e septo uterino são tratados
cirurgicamente na maioria dos casos.
A reprodução assistida também dispõe de várias técnicas para melhorar as chances de
gravidez. Nos casos de abortamento de repetição, destacamos o teste genético pré-
implantacional (PGT) que faz a análise genética dos embriões e pode detectar alterações
cromossômicos e defeitos gênicos. Isso é feito a partir de biópsia embrionária, portanto, antes que o embrião seja colocado no útero materno.
Como vimos, diversas são as causas de abortamento de repetição, assim como as
possibilidades de intervenção. Tendo isso em vista, todas as alternativas são exploradas, mas
em último caso, quando nenhuma técnica resulta em gravidez a termo, a paciente ainda pode
recorrer à cessão temporária de útero para tentar um desfecho positivo.
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